Morreu Herberto Helder


    1. Morreu Herberto Helder, o poeta dos poetas

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    5. Observador-há 8 horas
    6. Morreu o poeta Herberto Helder aos 84 anos
    7. Jornal de Notícias-há 6 horas
    8. Herberto Hélder (1930-2015)
    9. Correio da Manhã-há 8 horas
    10. Herberto Helder. Apresentação de um rosto
    11. Expresso-há 6 horas
    12. Correio da Manhã
Cf.
|DN

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As turvações da inocência

A entrevista que Herberto Helder escreveu para um revista que depois desapareceu, Luzes da Galiza. Foi publicada no PÚBLICO a 4 de Dezembro de 1990. DOWNLOAD





Morreu o poeta Herberto Helder
Morreu o poeta Herberto Helder
O poeta, que nasceu em 1930 no Funchal, morreu em casa, em Cascais.

  

Herberto Helder: 57 anos de poesia em dezenas de obras publicadas


"A morte sem mestre", o livro de inéditos escrito em 2013, publicado em junho de 2014, já esgotado, foi o último título do poeta Herberto Helder, falecido aos 84 anos na segunda-feira na sua casa em Cascais.

A obra foi publicada na Porto Editora, que também no ano passado publicou a poesia completa em "Poemas completos", obra que segue a fixação empregue na edição anterior, "Ofício cantante", e inclui os esgotados "Servidões", foi considerado pela crítica literária como o livro do ano em 2013, e "A morte sem mestre".
Herberto Helder estreou-se literariamente em 1958 com a obra "O Amor em visita", à qual se seguiu, os títulos "A colher na boca", "Poemacto" e "Lugar", editados nos princípios da década de 1960.
O poeta madeirense começou a trabalhar para a Emissora Nacional como redactor do noticiário internacional e publicou, entretanto, "Os passos em Volta", obra reeditada pelo Porto Editora, em janeiro último.
Em 1968, envolveu-se na publicação de "Filosofia na Alcova", do Marquês de Sade, que desencadeou um processo judicial no qual foi condenado, com pena suspensa, o que não impediu que fosse despedido da rádio oficial.
Neste mesmo ano publicou "Apresentação do Rosto", uma autobiografia, livro que foi apreendido pela Censura.
Em 1969 tornou-se diretor literário da Editorial Estampa, onde começou a publicar a obra completa de Almada Negreiros.
Depois de ter trabalhado como repórter de guerra em Angola, partiu para os Estados Unidos, em 1973, ano em que publicou "Poesia Toda", reunindo a sua produção poética até então, e fez uma tentativa falhada de publicar "Prosa Toda".
A Portugal, voltou só depois do 25 de Abril, já em 1975, para trabalhar na rádio e em revistas, como meio de sobrevivência, tendo sido editor da revista literária Nova, de que se publicaram apenas dois números.
Depois de publicar, nos anos seguintes, mais algumas obras, entre as quais "Cobra" (1977), "O Corpo, o Luxo, a Obra" (1978) e "Photomaton & Vox" (1979), remeteu-se ao silêncio.
Em 1977 enviou uma carta à revista Abril, endereçada a Eduardo Prado Coelho, na qual sobre si escreveu: "O que é citável de um livro, de um autor? Decerto a sua morte pode ser citável. E, sobretudo, o seu silêncio".
Por isso, pediu aos amigos que não falassem dele num documentário que António José de Almeida pretendia realizar para a RTP2, em 2007.
O documentário, "Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro", acabou por ser feito, mas apenas adensou o mistério em torno da figura do poeta, já que 17 das 29 pessoas contactadas pela produção se recusaram a dar o seu testemunho.
Em 2008 publicou "A faca não corta o fogo -- Súmula & Inédita", sucedendo-se no ano seguinte "Ofício Cantante".
Segundo a Porto Editora, Herberto Helder é um "poeta maior que ficará entre a meia dúzia de nomes incontornáveis da poesia portuguesa do século XX". #
Hoje, às 23h32, na RTP2
RTP | Transmissão do documentário “Herberto Helder - Meu Deus faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”
A RTP2 presta homenagem a um dos maiores poetas portugueses da segunda metade do século XX com o documentário: “Herberto Helder - Meu Deus faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”.

Herberto Helder nasceu na Madeira em 1930 e virou costas à ilha para partir à aventura pela Europa. Passou pela Universidade de Coimbra mas desistiu por achar que isso não acrescentava nada à sua formação. Andou à deriva por vários países da Europa onde teve profissões tão variadas como guia de marinheiros em bairros de prostitutas, cortador de legumes, empregado de restaurante, empacotador de aparas de papel e estivador. Deu largas à sua imaginação nas retretes privadas de Paris. Viveu momentos de precariedade e chegou a passar fome. Regressou a Lisboa, passando a viver da própria escrita.

Reconhecido como um dos maiores poetas portugueses contemporâneos, Herberto Helder é mesmo apontado como uma referência na poesia portuguesa depois de Fernando Pessoa. O universo enigmático e metafórico da a sua poesia leva-nos a uma dimensão cósmica que se aproxima das grandes leis que regem os movimentos da natureza.

Mas Herberto Helder não é só um poeta. Os livros que escreveu em prosa também marcaram a diferença, sobretudo pela linguagem ousada e sem preconceitos. É em obras como “Os Passos em Volta” e “Photomaton & Vox” que podemos encontrar um maior número de referências autobiográficas.

Tal como a sua poesia, Herberto Helder foi sempre para o público uma personalidade enigmática. Recusou o Prémio Pessoa e com ele mais de 35 mil euros. Foi proposto pelo Pen Clube de Portugal como português candidato ao Prémio Nobel da Literatura. Mas ninguém duvida que, caso viesse a ganhar o mais alto galardão internacional da literatura, Herberto Helder seria mais um autor a recusar o prémio, tal como fez Jean-Paul Sartre. #

Realização: António José de Almeida
Autoria e Argumento: Anabela Almeida
Produção: Panavideo

A morte ganhou o mestre. Morreu Herberto Helder

Aquele que era o maior poeta português vivo deixou a vida na manhã de segunda-feira, mas a sua obra permanecerá. O seu último livro, "A Morte Sem Mestre", foi publicado no ano passado. Distinguido em 1994 com o Prémio Pessoa, recusou recebê-lo. "Não digam a ninguém e deem o prémio a outro", pediu ao júri. 

Herberto Helder. Apresentação de um rosto

Alexandra Carita | 13:59 Terça, 24 de Março de 2015
 
Em 2010, o Expresso publicou um longo perfil do poeta. O texto percorria os seus passos e estava baseado em muito do que os seus amigos e conhecidos nos disseram sobre ele. Esta terça-feira, dia em que soubemos que o perdermos , faz todo o sentido recordá-lo.
Esqueça-se o poeta que recusa prémios, o autor que nega aparecer publicamente. Esqueça-se o escritor misantropo, o recluso. Herberto Helder é mais do que isso. Só ele habita o mundo poético da sua vida. Autor tabu, assim se pode considerar", nas palavras de Manuel Rosa, o seu editor (Assírio & Alvim), Herberto Helder conseguiu a obscuridade que sempre desejou e tornou-se o mito que os seus mais próximos compagnons de route ajudaram a criar. 
Escrever sobre o poeta é "matéria impossível", dizem-nos. O "bloqueio" é imediato. O autor não dá entrevistas, não fala a jornalistas, não gosta, não quer. "Vive ermitado". O medo, um dos seus temas favoritos, reina na corte dos (poucos) que com ele privam e lhe prestam vassalagem. Ninguém quer dizer seja o que for sobre a figura. "Ele pode não ficar satisfeito", "é complicado", "não sou a pessoa indicada". O rol de desculpas multiplica-se em cada telefonema. Sabemos que Herberto "está inquieto". "Foi avisado de que o Expresso queria fazer um trabalho sobre ele", dizem-nos. Correm boatos. Fecham-se mais portas e volta a expressão - "matéria impossível".
Há, no entanto, uma vontade mais forte que o medo, mera cobardia (afinal), que é a do protagonismo. Sussurra, soa baixinho: Somos nós os únicos, os privilegiados que convivemos com ele! E, em off, é possível falar dele mesmo que ele "fique zangado" (o que será sempre uma incógnita, uma vez que "não há artigo sobre a sua pessoa e obra que não colecione religiosamente").
O medo, esse medo verdadeiro e puro, obsessivo e majestoso, fica só para o poeta. Mestre.
Ícone maior da poesia portuguesa do (pós)-surrealismo. Medo visceral como cada uma das suas palavras, mas sempre em busca da respiração folgada, espécie de libertação, só alcançável através do mais ardiloso "ofício" da Criação. Absoluta e divina. Herberto Helder apresenta-se ao mundo como o Criador.
É-o na esfera sagrada daquela poesia torturada e torturante. Avassaladora. Doentia para um espírito em mutação constante, infinitamente à procura da perfeição à qual sabe nunca poder chegar. E é nesse universo de dor insuportável, de luta física e mental, que Herberto Helder expõe os seus fantasmas preferidos. A morte, o crime, o suicídio, o apocalipse, o génesis, o corpo (matéria orgânica sublime na capacidade de se metamorfosear), o ritual, a alquimia (assentes num culto do mundo vegetal maçónico, dirão alguns), o canto, a voz que o canta, a palavra, obsessivamente a palavra (corpo de trabalho do artesão/ poeta em tudo semelhante à madeira ou à pedra esculpidas à mão), a palavra monstruosa, tão aterradora quanto o amor que atravessa toda a sua obra. Paixão e sangue aproximam-se da salvação no messianismo herbertiano onde a destruição (da obra) é a única saída, transformada, porém, numa exaltação cada vez mais extrema da violência.
Porém, Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira (Funchal, 23 de Novembro de 1930) é um"cidadão pacífico". Vítor Silva Tavares, que o editou primeiro na Ulisseia e mais tarde na & Etc., descreve-o assim emuitos outros o consideram avesso a todo o tipo de confronto físico. "Exaltava-se sim por uma boa comezaina, um cozido, uma feijoada..." "O cidadão Herberto revela uma outra faceta. Com aquele ar sereno, aquela barba que lhe rodeia o rosto largo, a testa ampla, aquele ar transpirando bondade, se quiséssemos, é portador de um sentido de humor por vezes não detetável à primeira. É um humor subterrâneo o de Herberto Helder, vem-lhe daquele olho seco, não é um humor exposto.
Mesmo entre amigos, esta faceta é um possível detalhe da imagem de si próprio que queria revelar para ocultar o ser mais profundo", retoma Vítor Silva Tavares.
É umrapaz tímido aquele que chega a Lisboa aos 16 anos para acabar o curso liceal. O mesmo que em 1948 se matricula na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, para depressa mudar para a Faculdade de Letras, cujo o curso de Filologia Românica frequenta durante três anos. Instala-se na Real República Palácio da Loucura. No quarto que tomou para si ainda hoje permanece o grafito de um poema por si aí escrito. Nele, Herberto conta a história que quer que seja a sua. O seu desprezo pelo academismo é conhecido e aqui bem delineado numa ânsia trágica, por isso heróica, de agarrar para si a sina do vagabundo.
Os anos 50 vão a meio. Poesia e vagabundagem, uma e a mesma filosofia de vida, a de muitos e aquela que adota também para si.
Começa a publicar poemas avulso, entre Coimbra e Lisboa. Na capital trabalha algum tempo na Caixa Geral de Depósitos, mais tarde como angariador de publicidade e outros biscates de rendimento baixo que, entre outras razões, o levam a sediar-se numa casa de passe.
O chamado Grupo do Café Gêlo - a saber, Mário Cesariny, Luiz Pacheco (seu primeiro editor em 1958, "O Amor em Visita"), António José Forte, João Vieira, Hélder Macedo - é o universo intelectual (palavra que abjeta) que mais o atrai. Menos, muito menos exuberante e de personalidade bem mais apática, "ouve mais do que intervém". E é com dificuldade que consegue atrair as atenções de Cesariny para um primeiro poema que lhe pretende mostrar.
A edição do seu primeiro livro, no entanto, cai como uma verdadeira pedrada no charco. "Escrevi um texto que, através do seu errante imaginário, afirmava que um facho feroz tinha atravessado o gelo, todas as palavras frias, falsas, e que era inaugurada/-desvendada uma outra estação para a Poesia no Mundo, pós Fernando Pessoa", diz, em "A Obra ao Rubro", Rui Mendes (à época codiretor do "Jornal de Poesia") a Maria Estela Guedes (uma das poucas autoras, a par de Maria de FátimaMarinho, a dissecar o trabalho do autor, a primeira, e a fixar-lhe a biografia, a segunda).
França, Bélgica, Holanda, Dinamarca são os países que percorre entre 1958 e 1960. Parte já depois de ter casado com Maria Ludovina Dourado Pimentel e regressa a Lisboa com bilhete de repatriado vindo de Antuérpia já depois do nascimento da filha Gisela Ester Pimentel de Oliveira. Na bagagem traz quase concluídos "A Colher na Boca" e "Os Passos em Volta".
É praticamente o mesmo o ambiente que o acolhe. As tertúlias continuam, os cafés vão variando, os grupos também. Mantém-se a filosofia. "Ganhar sim, mas pouco", regra de ouro como lhe chama Vítor Silva Tavares. "Não queríamos uma profissão, escrevíamos umas coisas, mas optávamos por um nível de vida voluntariamente baixo. Era uma máxima para todos, e da qual Herberto não se excluía. O diferencial deste preceito era a dose de liberdade que se pagava desta maneira, num mundo concentracionário e fechado.
Chamávamos-lhe vagabundagem ou o que pudesse ser entendido como tal, fazia parte do pulsar da criação artística." Empregos circunstanciais são tudo o que é passível de ser aceite, nada mais. Herberto torna-se então encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian e percorre o país, depois de ter trabalhado como criado numa cervejaria, cortador de legumes, empacotador de aparas de papéis, e guia de marinheiros no mundo da prostituição por essa Europa fora. Por isso, é com alguma surpresa que os amigos veem Herberto aceitar uma pensão vitalícia oferecida pelo Estado, era então António Alçada Baptista secretário de Estado da Cultura.
"Onde ficava então o suplemento de liberdade sem o qual um criador não pode nem deve viver?" A resposta é dada novamente por Vítor Silva Tavares. "A pensão é modesta, corresponde àquele mínimo de sustentação para que, dedicado à produção literária, possa viver a vidinha." Já o Prémio Pessoa não. A recusa que o tornou famoso, em 1994.
Essa valia muito dinheiro e corrompia todos os seus princípios. "Nunca ninguém acreditou que ele aceitasse o prémio. Nem ele próprio que lho atribuíssem." Idos iam os anos de farra. As tardes passadas no Toni dos Bifes, com tertúlia certa e plateia fixa. "Era a hora da devoção", ou "a hora do órfão", valha o sarcasmo. Herberto encontrava-se com Carlos de Oliveira, que admirava profundamente e de quem sentia necessidade séria de conforto. Foi lá que, dizem-nos, a ira tomou conta do "cidadão pacífico" ao ver a edição pirata de "O Corpo o Luxo a Obra" (1978) dada à estampa por Luiz Pacheco. Conta-se que houve pancadaria, mas diz quem presenciou que a única vontade do autor era "punir o criminoso, denunciando o crime". Ira efémera, porém. Logo desaparecida longe da "plateia" e perante a necessidade da ação. "Homem de ambiguidades", "pleno de contrariedades". "Sedutor e facilmente seduzível por convicções momentâneas..." Foi assim que uma tarde decidiu alistar-se no PCP. A militância "não durou mais de cinco minutos".
Já a noite era para "todos", entre a Galega, o Paladium, mas sobretudo o Montecarlo. Herberto, Virgílio Martinho, Ernesto Sampaio, Pedro Oom, Fernanda Alves, Miguel Elrich, Eurico Gonçalves eram a prata da casa. António Barahona, Luiza Neto Jorge, Luiz Pacheco, Vítor Silva Tavares clientes assíduos. Manuel Gusmão, António José Forte, Escada, Mário Viegas, João César Monteiro frequentadores de ocasião. Aí, o "regabofe" era maior. Piadas e discussões, provocações, copos até às tantas "sem constrangimentos ou obrigações familiares".
Um espírito que não lhe era assim tão natural e o levava não poucas vezes ao fastio.
África, mais precisamente Angola, é a sua tábua de salvação durante dois anos, entre 1970 e 1972 (um ano antes, Isabel Figueiredo era mãe do seu segundo filho, Daniel João Figueiredo de Oliveira). Hoje nem Angola, nem cafés, apenas a reclusão.
Percorre, então, a ex-colónia como repórter do "Notícia" e assume o seu mundo em cada artigo que publica sem deixar de manifestar os gostos mais pessoais. Kerouac e Ginsberg, Bob Dylan são referências que não dispensa. "Easy Rider" faz parte do seu imaginário.
Leonard Cohen, Jim Morrison, Melanie, os Beatles fazem parte da sua galeria de eleitos. Chega a citar Patti Smith em "Photomaton & Vox" (1979) e aconselha a leitura de Henry Miller.
Em Luanda, o trabalho de jornalista aproxima o autor de uma realidade quotidiana menos obsessiva. No entanto, não lhe poupa o calvário depressivo em que sempre viveu.
Psicanálise, grupanálise, terapias várias fazem parte da amargura do Eu herbertiano
São raízes dentro de um homem só. Só e apaixonado por uma mãe desaparecida oito anos após o seu nascimento. Morte abençoada, morte amaldiçoada. Ele, o poeta, emaranhado numa culpa perpétua, um vazio desesperante, num mundo de machos, onde a virilidade aniquila o choro da criança e lhe atira como consolo apenas a loucura. A do génio? De Angola traz consigo outro tempo, tempo algum. Esse tempo insular, o da ilha natal, marcado por sons, gestos e rituais. Tempo de aprendizagem, de iniciações e amputações.
Aquele tempo onde vive hoje, onde viveu ontem, algures em Cascais, como de passagem pelos Estados Unidos, incógnito. Invadido pelo ego. Forte. Fortíssimo. Maior que a idade, a sua e a dos seus poemas. Ego eterno, como a eternidade que se vaticina. Ego aglutinador da loucura. Dessa loucura dele, poeta, mestre, mais uma vez, que mais e mais uma vez o leva a emendar, a escrever e reescrever a obra inacabada. Obra impossível. #

Texto publicado na edição do Expresso de 28 de Agosto de 2010






Herberto Helder : A última ciência
Pedro Mexia | 14h32
A 13 de junho de 2014, Pedro Mexia escreveu no Expresso sobre o último livro de Herberto Helder, "A Morte sem Mestre", onde "o poeta canta 'o alvoroço mental deste fim de idade', e várias vezes diz que o 'velho' é um 'estupor', um 'cabrão'". Republicamos o texto de Mexia neste dia em que soubemos que perdemos Herberto Helder. Ler mais: http://expresso.sapo.pt#ixzz3VKz1nufd

Herberto Helder

A última ciência





A 13 de junho de 2014, Pedro Mexia escreveu no Expresso sobre o último livro de Herberto Helder, "A Morte sem Mestre", onde "o poeta canta 'o alvoroço mental deste fim de idade', e várias vezes diz que o 'velho' é um 'estupor', um 'cabrão'". Republicamos o texto de Mexia neste dia em que soubemos que perdemos Herberto Helder .
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A última ciência
Herberto Helder avisa, em nota prévia, que tudo o que possa parecer acidental neste livro é, na verdade, intencional. E depois, logo no começo, uma poesia diz que todos os erros ortográficos ou de sentido são propositados, "um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro", versão herbertiana do "leitor hipócrita, meu semelhante, meu irmão".
Que coisas serão essas que podem parecer acidentais mas não o são? A mudança de chancela, da clássica Assírio para a Porto Editora? A capa personalizada, com a caligrafia do autor? O CD que acompanha o livro e onde Herberto lê alguns poemas com voz cansada, ansiosa e tranquila? E o que são os "erros ortográficos", além dos habituais acentos de uso idiossincrático, ou talvez de uma resistência ao acordês? Finalmente, o que significa um "erro de sentido", para mais num poeta onde nunca é exactamente o "sentido" (discursivo) que nos fascina? Tantas advertências servem talvez para nos recordar que, mude o que mudar, estes são ainda "poemas quando se vai com a mão/ e bufam e arranham logo", poemas indóceis, não domesticáveis, soberanos.
Tudo parece aqui intencional, incluindo os supostos "erros", incluindo esta visibilidade invisível da última fase, que começou há uns bons anos com as fotografias de um Herberto mais velho do que aquele que conhecíamos de outras imagens; com as sucessivas antologias e poemas escolhidos, completos ou rasurados; com as edições pequenas que esgotam logo e se tornam um "fenómeno"; e nestes últimos dois livros, assumidamente pré-póstumos, com uma referencialidade inédita. Há telemóveis nestes poemas e discursos vários políticos: "uma reforma de pilha-galinhas", "não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás", e esse divertido "aparecem em toda a parte uns gajos que, faz favor", "desde o Cristo Cunhal até ao Jotinha". Esses são os poemas mais curiosos, mas não os mais fortes. Curioso também, ou mais que isso, é o facto de Herberto dizer que nunca tentou sequer um "resquício metafísico" e depois escrever um poema em que Jesus é personagem. Curiosa, ou mais, é a confissão de que os seus poemas são "seus" de um modo que os filhos nunca podem ser, uma vez que os poemas não são entidades diferentes mas uma única pessoa (o que é, aliás, um resquício metafísico).
Porém, no essencial, "A Morte sem Mestre" é um prolongamento temático de "Servidões".
O poeta canta "o alvoroço mental deste fim de idade", e várias vezes diz que o "velho" é um "estupor", um "cabrão", lembra-nos os seus 83 anos, mas também declara: "é que eu estou vivo e estremeço ainda". Mais do que um manual de morte, de Tanatos, esta colectânea é uma celebração de Eros: grande parte dos poemas são odes priápicas, de linguagem entusiasta e desabrida, exclamativa e vernácula, reiterativa e quase bíblica, quase "poema sumério", ou quase Bataille, odes vorazes a mulheres, meninas e putas, "femeazinhas" de todo o género e feitio, longilíneas, espessas, sedosas, árduas, amaras, bravas, humílimas, subtis, nuas, vestidas, violentas, descalças, catorzinhas, inspiradas, revoltas. Herberto evoca uma "primeira noite no começo do mundo" e outros dias e noites, antigos e modernos, e nesses poemas a "coisa amada" é ainda uma labareda, um nó de sangue na garganta de um homem velho, uma "verdade última", uma última ciência. #
A MORTE SEM MESTRE
Herberto Helder
Porto Editora, 2014, 64 págs., €22

Texto publicado na edição do Expresso de 13 de Junho de 2014
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia

Ler mais: http://expresso.sapo.pt/a-ultima-ciencia=f916668#ixzz3VL0jfmkb






Seis poemas de Herberto Helder

O coordenador editorial da Assírio & Alvim, Vasco David', e os críticos do PÚBLICO António Guerreiro e Hugo Pinto Santos escolheram seis poemas de Herberto Helder. A edição utilizada foi, em todos os casos, a compilação Poemas Completos (Porto Editora, 2014) #
 

AOS AMIGOS

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

de Lugar (Escolha de Vasco David’)



alguém salgado porventura
te
toca
entre as omoplatas,
alguém algures sopra quente nos ouvidos,
e te apressa, enquanto corres
algumas braças acima
do chão fluido, leva-te a luz e subleva,
tão aturdidos dedos e sopros,
até ao recôndito,
alguma vez te tocaram nas têmporas e nos testículos, alto,
baixo,
com mais mão de sangue e abrasadura,
e te cruzaram nesse furor,
e criaram, com bafo
ardido, ásperos sais nos dedos, e te levaram,
a luz corrente lavrando o mundo,
cerrado e duro e doloroso, acaso
sabias
a que domínios e plenitudes idiomáticas
de íngremes ritmos, que buraco negro,
na labareda radioactiva,
bic cristal preta onde atrás raia às vezes
um pouco de urânio escrito

de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Vasco David’)

BICICLETA

Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.

O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.

De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.

de Cinco Canções Lunares (Escolha de Hugo Pinto Santos)


que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha,
brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda

de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Hugo Pinto Santos)


li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a
paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega

de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de António Guerreiro)

cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o autoclismo,
requiescat in pace,
e eu não descanso em paz nas retretes terrestres,
a água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,
como quem diz:
aqui vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em vernáculo
e tudo,
que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos esgotos,
merda perpétua,
e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão a quem aos poucos foi falhando o sopro
até a noite desfazer o canto,
errático canto e errado no coração da garganta,
canto que o traspassava pela metade das músicas
— e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda enquanto as turvas águas últimas
se misturavam com as águas primeiras
de Servidões (Escolha de António Guerreiro)

Morreu Herberto Helder, o poeta dos poetas

O maior poeta português da segunda metade do século XX morreu aos 84 anos.

Herberto Helder morreu esta segunda-feira, aos 84 anos, em Cascais. O poeta, nascido em 1930 no Funchal, morreu em casa, e as causas da morte não foram reveladas. Era considerado por muitos o maior poeta português da segunda metade do século XX. A cerimónia fúnebre realiza-se na quarta-feira e vai ser reservada à família, segundo comunicado da Porto Editora.

No ano passado, em Junho, publicou A Morte Sem Mestre, pela chancela da Porto Editora — numa edição que incluía um CD com cinco poemas ditos pelo autor. Em 2013 havia publicado Servidões. Desde a publicação de A Faca Não Corta o Fogo, em 2008, tornou-se um caso de consenso crítico quase absoluto. Tal como os anteriores livros de Herberto Helder, A Morte Sem Mestre teve apenas uma edição, tendo esgotado rapidamente.
"Herberto Helder foi um poeta poderoso, a sua obra foi um centro de atracção e um horizonte em relação ao qual todos os seus contemporâneos tiveram de se situar. Como antes tinha acontecido com Fernando Pessoa, também houve um 'efeito Herberto Helder'", diz ao PÚBLICO o crítico António Guerreiro.
Pouco depois de saber da notícia da morte de Herberto Helder, a escritora Maria Velho da Costa estava visivelmente emocionada." Morreu o maior poeta português depois de Luís de Camões", disse ao PÚBLICO."Não estava com ele há algum tempo, mas recebia todos os seus livros. O último, A Morte Sem Mestre, "é um longo poema, belíssimo". E terminou com um quase pedido: "Se as minhas palavras tivessem alguma influência, eu propunha um dia de luto nacional."
"Quando morre um poeta com a dimensão de Herberto Helder o que sentimos é que não apenas morreu um poeta mas a poesia", declarou ao PÚBLICO o também poeta madeirense José Tolentino Mendonça, falando de um luto difícil. "Nestes casos o luto torna-se insuportável e, ao mesmo tempo, este luto faz-nos perceber que Herberto Helder é imortal com a sua obra. Daqui a mil anos, se subsistir um falante de língua portuguesa a poesia de Herberto Helder subsistirá".
 Entre os muitos poemas do poeta que começou a ler na adolescência, Tolentino Mendonça lembra aquele que começa com o verso "Não sei como dizer-te que a minha voz te procura". É o início de um poema do livro A Colher na Boca, de 1961.
José Tolentino Mendonça lembra que começou muito novo a ler Herberto, e que nessa leitura esteve presente um facto biográfico, "o de também ele ter emergido no contexto insular, na Ilha da Madeira". Isso, continua, "era um vínculo forte para um adolescente que começava também na poesia a procurar razões para a própria vida. E essa descoberta foi a primeira viagem."
Sublinha a insularidade como um traço permanente na poesia de Herberto. Uma insularidade que no seu sentido "está talvez mergulhada a muitas léguas de profundidade do que é essa palavra. Não é uma dimensão muito explícita, mas ler Herberto Helder na Ilha da Madeira tem uma ressonância e uma vitalidade que não se esquece", refere, sublinhando um aspecto que considera marcante. "Quando se ouvia Herberto Helder falar, mesmo muitos anos depois de ter saído da ilha, continuava com a pronúncia de um habitante do Funchal. Era um funchalense claramente identificável. E isso era uma nota afectiva de grande impacto."
Num testemunho recolhido pela agência Lusa, o crítico e poeta Pedro Mexia considera que “o lugar de Herberto Helder na literatura portuguesa equivalerá ao de Fernando Pessoa na primeira metade do século XX”, algo que, acrescenta, “se começou a dizer há algum tempo e que se tornará, com o tempo, uma coisa pacífica, sem prejuízo dos grandes poetas da geração dele que houve em Portugal”.
Numa nota de pesar enviada às redacções, o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, escreveu: “Poucos foram os que durante os últimos cem anos tanto fizeram pela construção da língua portuguesa e tão influentes foram na organização da linguagem poética contemporânea.” E acrescentou: “A sua concentração em torno do seu ofício, ignorando e recusando formas de espaço público para lá da sua escrita, são um dos sinais da sua determinação relativamente a um discurso sobre o seu trabalho e sobre a sua presença.”
Em 1994, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa pela sua obra que, segundo o júri, iluminava a língua portuguesa. Herberto Helder, no entanto, recusou a distinção, uma das mais importantes atribuídas em Portugal, e pediu ao júri que não o anunciassem como vencedor e dessem o prémio a outro.
No comunicado esta terça-feira enviado pela Porto Editora às redacções, lembra-se um dos poemas de A Morte Sem Mestre : "queria fechar-se inteiro num poema/ lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena/poema enfim onde coubessem os dez dedos/ desde a roca ao fuso/ para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo/quero eu dizer: todo/ vivo   moribundo   morto/ a sombra dos elementos por cima//".
Partindo de uma interpretação pessoal do surrealismo, que lhe forneceu uma das mais poderosas criatividades do imaginário poético português, Herberto Helder criou uma obra prodigiosa, ao longo de quase 60 anos de edição. A luz da sua escrita faz deste poeta obscuro um nome único no âmbito da poesia portuguesa do nosso tempo.
A escrita de Herberto quebrou qualquer distinção estanque entre poesia e ficção, como demonstram livros “de ficção” como Os Passos em Volta e Photomatom & Vox. Passos da sua bibliografia, em que o trabalho com as palavras, a inventividade das vivências e a individualidade da voz autoral não são o exclusivo de uma forma literária, mas da palavra levada ao máximo das suas possibilidades.
Desde O Amor em Visita, ainda no fim dos anos 50, até A Morte sem Mestre, já em pleno século XXI, a produção escrita de Herberto Helder criou um universo em permanente expansão (e revisão) que lhe garantiu uma perenidade que o autor decerto não procurara. É conhecido o recolhimento em que decorria a sua existência privada, uma discrição que também se confirmava na extrema escassez de resgistos fotográficos publicamente conhecidos, uma tendência atenuada nestes últimos anos.
Os seus últimos livros, Servidões e A Morte sem Mestre, assinalam uma inflexão marcada por uma mais nítida e declarativa dimensão autobiográfica, com todas as cautelas que a palavra exige quando aplicada a um poeta como Herberto Helder. Esta abertura possibilitou, por exemplo, vislumbres da infância, mas também passagens em que descreve cruamente a vulnerabilidade de alguém que sente a morte próxima.
"Aqui vão os meus restos mortais"
"Foi muito inesperado", confessa o poeta Gastão Cruz sobre a morte de Herberto Helder. "Tinha tido um contacto recente com ele, o que já não acontecia há algum tempo", conta. No final de Janeiro Herberto enviou-lhe um exemplar dos Poemas Completos com uma dedicatória: "Aqui vão os meus restos mortais".
Gastão Cruz lembra que houve um tempo em que se correspondiam bastante, mas que isso “deixara de acontecer à medida que ele se foi isolando”. Daí que tenha ficado “muito satisfeito” por ter conversado recentemente com Herberto pelo telefone. “Falámos da vida, de poesia, de coisas de pessoas que já não se falavam há muito tempo”, diz Gastão Cruz, que conviveu muito com o poeta mais velho nos anos 60 e 70. "Primeiro, no restaurante Toni dos Bifes, na Avenida Praia da Vitória, ao lado do prédio onde vivia Carlos de Oliveira, e depois da morte de Carlos de Oliveira no café Monte Carlo, na Fontes Pereira de Melo”.
Lembrando que Herberto era muito amigo do poeta de Sobre o Lado Esquerdo e “sentiu muito a sua morte”, observa: “A morte afectava-o sempre, ele manifesta uma grande dificuldade em enfrentar o envelhecimento e a morte, e isso é muito visível no livro Servidões e neste último, A Morte sem Mestre”.
Num e no outro, diz ainda, “vai por caminhos de linguagem diferentes dos anteriores, que eram mais metafóricos, mas continua a ter uma linguagem fulgurante, só que com mais referências ao concreto”. Um  concreto, precisa, “não abordado da forma inócua que muitos adoptam para tratar o quotidiano”. A última poesia de Herberto “era de uma grande força verbal” e “mantinha uma ligação profunda com o que sempre foi a poesia dele, uma poesia de um poema único", salienta Gastão Cruz.
O poeta prefere não estabelecer comparações, mas não hesita em afirmar que Herberto Helder é um dos nomes de primeira linha da poesia portuguesa. "É extraordinário como na segunda metade do século XX, depois de um fenómeno como Fernando Pessoa, a poesia conseguiu renovar-se”, nota. "Surgiram poetas excelentes e ele é um dos maiores dessa geração onde estão nome como Ruy Belo, Luiza Neto Jorge, ou um pouco mais velhos, como Sophia de Mello Breyner Andresen e Carlos de Oliveira".
Sobre a marca que Herberto deixa, Gastão Cruz remete para um ensaio de  António Ramos Rosa, Herberto Helder – Poeta Órfico. Neste texto, recolhido em Poesia, Liberdade Livre (1962), Ramos Rosa diz de Herberto Helder que este “é um poeta visionário e um poeta órfico da estirpe de um Hölderlin ou de um Rilke”.
Para Gastão Cruz, a poesia de Herberto “cruza o modernismo e o surrealismo com algumas coisas dos poetas do romantismo alemão”, mas há nela “uma intensidade própria” que associa a algo que o poeta um dia lhe confidenciou: “Disse-me que a poesia dele parte de uma matriz, uma tragédia pessoal que foi a perda da mãe aos oito anos”. E cita os versos de A Colher na Boca em que Herberto  diz que “No sorriso louco das mães batem as leves/ gotas de chuva (…)".
“Ele podia ter deixado apenas esse livro e já seria suficiente para o considerar único, esse livro é para Herberto o que a Clepsidra é para Camilo Pessanha ou o O Livro de Cesário Verde para o poeta de O Sentimento de um Ocidental, defende. “Com um único livro, ele podia ter conquistado esse lugar excepcional. Fez mais”, conclui Gastão Cruz.
“Agora há um enorme silêncio”, diz Jaime Rocha, cujo testemunho confirma bem o hipnótico poder de sedução que a poesia de Herberto exerce sobre quem tomba de improviso nesta verdadeira língua por direito próprio. “Tínhamos vinte anos de diferença e a poesia dele apanhou-me quando eu tinha 17, 18 anos, e qualquer ideia de pensamento poético a partir desse momento se alterou, a minha relação com o texto mudou”, disse ao PÚBLICO Jaime Rocha, pseudónimo literário do escritor e jornalista Rui Ferreira e Sousa. “Demorei mais 25 anos a tentar encontrar um texto meu, uma palavra minha que conseguisse sair daquela força, daquela sedução que descobri nele”.
Já depois do 25 de Abril de 1974, Jaime Rocha e a sua mulher, a escritora Hélia Correia, encontraram-se pela primeira vez com o poeta, em casa de António Ramos Rosa. “O Herberto era visita de domingo dele, mas nós não sabíamos”, diz. “Quando vimos aquele senhor ali sentado ficámos sem palavras”. Apesar do espanto e da mudez, acha que o encontro lhe fez bem. “Foi como pôr os pés na terra. Aquele homem era como nós”. Mas guardou a distância. “Por pudor, não sei. Gostei de conversar com ele naquele dia, mas depois não o acompanhei. Senti que haveria sempre um grande silêncio entre nós. O meu convívio era com a obra. Eu não tinha nada para lhe dizer”, acrescenta.
“O Herberto Helder para mim é o poeta mais importante, o que mais me influenciou de uma geração que incluía Sophia ou Eugénio de Andrade”, diz ainda. “Dava-me uma força que só encontro no mar da Nazaré, a minha terra, um mar de tragédia, dramático”. Jaime Rocha guarda ainda o primeiro livro que comprou e leu de Herberto Helder, Retrato em Movimento (1967): “É um livro pequenino da Ulisseia, uma das minhas quatro ou cinco relíquias”. Leu-o a conselho de Bernardo Santareno, a quem agradeceu para sempre a sugestão.
E voltando à triste notícia de hoje, e à frase com que iniciou o seu depoimento, o poeta constata: “Fomos construindo uma bola muito grande à volta do Herberto e nestes dias fica um grande vazio”.
A ensaísta Rosa Maria Martelo afirma dever a  Herberto Helder “horas sem conta de pura alegria de ler, de vislumbre, de paixão das coisas do mundo”. E ao saber que o poeta “morreu de morte súbita”, diz que “ter sido assim de repente” lhe parece “de uma grande justiça”. Nos últimos livros, recorda, “Herberto Helder tinha antecipado muitas vezes a morte própria, vivendo-a em poemas exasperados, sem querer fugir à violência, ao pânico, mas em certos textos desejava isto mesmo: morrer depressa e sem dor”. E acrescenta: “Ele que nos últimos livros morreu tanto, tantas vezes, com evidente sofrimento”.
Herberto deixa-nos, diz Rosa Maria Martelo, “uma das obras maiores alguma vez escritas em língua portuguesa, porque na sua poesia a língua extrema-se em subtileza, nitidez, precisão conceptual e plástica”. E sublinha que o poeta “escreveu com paixão absoluta a obra a que chamou poema contínuo, ininterrupto” para notar que, “nestes tristes tempos, em que o significado das palavras flutua constantemente ao sabor de interesses e compromissos”, ele nos deixa “uma escrita que acontece literalmente no reverso disso, do lado da verdade, que é onde as palavras são um corpo vivo, sempre acabado de nascer”.

Poema contínuo
Herberto Helder publicou os seus primeiros poemas em antologias madeirenses – Arquipélago (1952) e Poemas Bestiais (1954) –, e ainda na revista Búzio, editada pelo seu conterrâneo António Aragão. A sua obra de estreia, O Amor em Visita, um pequeno folheto editado pela Contraponto, saiu em 1958, quando frequentava, em Lisboa, o grupo surrealista que se reunia no Café Gelo, convivendo com Mário Cesariny, António José Forte e Luiz Pacheco, entre outros.
Por esta altura, abandonada a frequência universitária em Coimbra (primeiro de Direito e depois de Filologia Românica), o poeta tivera já vários empregos mais ou menos precários - passou pela Caixa Geral de Depósitos, angariou publicidade, trabalhou no Serviço Meteorológico Nacional e foi delegado de propaganda médica.
Em 1961, publicou o livro que desde logo o consagraria como uma das vozes fundamentais da poesia portuguesa contemporânea: A Colher na Boca, originalmente editado pela Ática, a chancela que então publicava as obras de Fernando Pessoa. Ruy Belo, que também publicou na Ática, e no mesmo ano, o seu primeiro livro, Aquele Grande Rio Eufrates, contou a Joaquim Manuel Magalhães, segundo este narra em Os Dois Crepúsculos (1981), que “ao ver em provas na editora o livro de Herberto Helder, teria sentido ser esse o livro e não o seu”.
Entre a publicação, em 1958, do longo poema O Amor em Visita, cujos versos iniciais todos os jovens leitores de poesia portuguesa contemporânea sabiam de cor nos anos 60 e 70 – “Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue. Com ela/ encantarei a noite (…)” – e o lançamento de A Colher na Boca, o poeta viajou pela Europa.
Tornou-se mítico o ecléctico e pitoresco inventário de ofícios que foi desempenhando para sobreviver enquanto deambulava pela França, Holanda e Bélgica. Foi operário metalúrgico, empregado numa cervejaria, cortador de legumes numa casa de sopas, policopista, guia de marinheiros em Amsterdão – um tipo de turistas geralmente interessado num género muito específico de maravilhas arquitectónicas – e empacotador de aparas de papel, curiosa ocupação para alguém que irá demonstrar uma permanente pulsão para se transformar, ele próprio, em papel, desaparecendo no interior da obra.
Não por acaso, Tríptico, o poema que abre hoje as compilações da sua poesia (logo após Prefácio), inicia-se com uma citação de Camões: “Transforma-se o amador na coisa amada com seu/ feroz sorriso, os dentes,/ as mãos que relampejam no escuro (…)”.
Regressado a Lisboa, começa por trabalhar nas Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. Depois passa pela Emissora Nacional, onde  escreve noticiário internacional, e pela RTP, trabalha em publicidade e torna-se, em 1969, director literário da Estampa, onde dá início à edição das obras de Almada Negreiros, um autor que sempre admirará.
Em 1963, publicara um livro que basta para lhe assegurar também um altíssimo lugar entre os prosadores portugueses contemporâneos, Os Passos em Volta. E ainda nos anos 60 saem Poemacto (1961), Lugar (1962), Electronicolírica (1964), depois reintitulado A Máquina Lírica, Húmus (1967) e Retrato em Movimento (1967), que desaparecerá da obra para depois o que dele “foi possível fragmentariamente salvar” (dirá o próprio autor) reaparecer em Do Mundo (1994). E em 1968 publica O Bebedor Nocturno, o primeiro dos seus vários volumes de traduções de poesia, e  Apresentação do Rosto, título que mais tarde rejeitará, ainda que vários dos textos que o compõem ressurjam noutros livros, designadamente em edições posteriores de Os Passos em Volta e em Vocação Animal (1971). Herberto Helder nunca deixou de reorganizar e reescrever a sua obra, que encarava como um só “poema contínuo”.
No início dos anos 70, volta a viajar pela Europa e, em 1971, trabalha em Angola para a revista Notícia, de Luanda. Numa das suas reportagens, ao viajar de carro com o seu colega Eduardo Guimarães, que ia ao volante, sofre um grave acidente de viação que quase lhe custa a vida.
Novamente em Lisboa, trabalha na editora Arcádia, e também na RDP, como jornalista, e colabora em várias publicações, sendo um dos organizadores da revista Nova (1976). Em 1968 afirmara ir remeter-se ao silêncio e deixar de escrever – voltará a fazê-lo mais vezes –, e, de facto, descontado Vocação Animal, não publica nenhum novo livro até Cobra (1977), se exceptuarmos também os dois volumes da sua Poesia Toda, publicados na Plátano em 1973, ano em que viaja para os Estados Unidos.
Mas Cobra assinala o início de um período particularmente criativo, que inclui O Corpo o Luxo a Obra (1978), Flash (1980), a plaquette A Plenos Pulmões (1981) e A Cabeça Entre as Mãos (1982). E ainda Photomaton & Vox (1979), um volume de prosa e poesia que é porventura o mais autobiográfico dos seus livros, e o primeiro lançado com a chancela da Assírio & Alvim, de Hermínio Monteiro e Manuel Rosa, que será durante décadas a sua editora, até à recente passagem para a Porto Editora, onde saiu já A Morte Sem Mestre e a compilação Poemas Completos.
Se não contarmos com compilações (ainda que todas elas tragam significativas alterações à sua obra), volumes de traduções, como As Magias (1987), e a sua muito pessoal antologia das “vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa”, Edoi Lelia Doura (1985), segue-se mais um período de silêncio até à publicação de A Última Ciência (1988), e outros seis anos até Do Mundo, publicado em 1994, o mesmo ano em que lhe é atribuído o Prémio Pessoa, que rejeita.
Embora continue a reescrever a obra, Herberto eclipsa-se depois durante quase uma década e meia. Mas o seu regresso com A Faca Não Corta o Fogo, possivelmente o melhor livro de poesia portuguesa do século XXI, é avassalador.
Se o facto de nunca dar entrevistas, de não frequentar a cena cultural, de não permitir a reedição dos seus livros, de recusar todos os prémios e homenagens, e claro, de ir construindo uma obra que  constitui uma aventura de escrita (e de vida) sem paralelo na literatura portuguesa actual, já há muito tinham rodeado Herberto Helder de uma aura invulgar nestes tempos em que os poetas se promovem a si próprios nas redes sociais, a publicação de A Faca Não Corta o Fogo tornou-o definitivamente um mito, o que teve como efeito colateral uma acentuada subida de cotação dos seus livros nos alfarrabistas.
Em 2013 publicou o notável Servidões, e em 2014 saiu A Morte Sem Mestre, que assinalou a sua passagem para a Porto Editora e que recebeu críticas bastante desiguais, quebrando pela primeira vez o consenso quase absoluto que se gerara em torno da sua obra.
Herberto Helder de Oliveira vivia actualmente com a sua segunda mulher, Olga Ferreira Lima, em Cascais. Era pai de Daniel Oliveira, político e colunista, e de Gisela Oliveira. #

O mito de Herberto Helder

A poesia de Herberto Helder obriga a colocar esta questão: será que ainda é possível a poesia num mundo completamente secularizado?

No texto de abertura de Ou o poema contínuo (2001) – redução da sua “poesia toda” a uma “súmula”, não a uma antologia – Herberto Helder designa a época como a de um tempo de redundância: “O livro de agora pretende então aceitar a escusa e, em tempos de redundância, estabelecer apenas as notas impreteríveis para que da pauta se erga a música”.
Insinua-se aqui uma atitude radical que o poeta seguiu rigorosamente, ao fazer com que a sua obra existisse apenas por si mesma, impermeável a interferências mundanas, erguendo-se fora – e contra – o ruído do mundo. Isto significou uma enorme severidade: de Herberto Helder, não conhecemos senão uma auto-entrevista, umas raras fotografias e muito pouco da pessoa do autor e da sua vida civil, muito embora muitos poemas, e sobretudo a prosa de Passos em Volta e Photomaton & Vox, estejam cheios de referências crípticas de ordem autobiográfica.Mas de certo modo Herberto Helder tudo fez para erradicar a pessoa do autor, ou melhor, para evitar que ele surgisse como mediação entre a sua obra e os leitores. Retirou-se para deixar a obra fazer o seu percurso e resplandecer em total autonomia. Atravessou incólume um tempo em que se impuseram as determinações da “vida literária” e em que as regras do campo literário ditaram aos autores a necessidade de se mostrarem e aparecerem para além dos livros, de entrarem no jogo que faz da literatura um pretexto para outra coisa. Isto significou a afirmação de uma autonomia incondicional da obra, segundo um preceito que o modernismo tinha reivindicado e seguido como um dos seus princípios estético-poéticos fundamentais.
Ao retirar-se e subtrair-se a todos os procedimentos que interferem nessa autonomia, Herberto Helder ganhou a imagem do poeta que recusa apresentar-se e representar-se nos palcos público e mediáticos. E assim se foi forjando algo a que poderíamos chamar o “mito Herberto Helder”, o mito do “poeta obscuro” que, com o seu gesto de retirada, desafia algumas regras da legitimação e consagração. De certo modo, ele foi um elemento escandaloso (não o único, acrescente-se) da grande família literária, aquele que não contribuía para os momentos festivos nem respondia aos apelos do culto, renunciando sistematicamente a todos os prémios, segundo aquele princípio flaubertiano de que “as honras desonram”. Por essa distância, ele acabou por ganhar uma aura - aquela “coisa” que desde Baudelaire os poetas tinham perdido e não se tinham dignado a recuperar - que não encontramos em nenhum outro poeta seu contemporâneo.
Mas o mito Herberto Helder jamais se construiria por exclusiva força destas circunstâncias. Fundamental, neste processo, é a própria poesia, que tem uma tonalidade órfica e, sem deixar de ser profundamente do nosso tempo, parece recuperar uma voz antiga, fazendo entrar nela uma dimensão que não só não pertence ao nosso tempo, não é de aqui e de agora, mas nem sequer pertence ao tempo da História. Vem de um tempo mítico, como os poemas das civilizações antigas ou governadas pela ordem do ritual e do tempo cíclico que ele traduziu. Muitas vezes, ela reenvia para o imemorial que fala através da voz do mito e está fora da nossa cronologia.
De certo modo, a poesia de Herberto Helder, nas suas anacronias, no encontro que nela se dá entre o mais contemporâneo e o mais antigo (uma antiguidade sem datas) obriga a colocar esta questão: será que ainda é possível a poesia num mundo completamente secularizado? A sua poesia restitui algo que nós, ainda que não o saibamos formular com exactidão, sabemos que foi perdido ou só já tem uma existência secreta e remota. E disso se alimentaram também as projecções e imagens públicas a que se prestou a figura de Herberto Helder enquanto poeta. #

Herberto Helder em Angola, numa fotografia inédita de 1961

Herberto Helder. A arte de ser único


Servidões, o novíssimo (e esgotadíssimo) livro do único poeta português vivo que verdadeiramente alvoroça a nossa pequena cena literária, é mais uma evidência a juntar ao "caso Herberto Helder": o raro caso da entrega absoluta a um percurso artístico assumido como predestinação pessoal.
Aos 82 anos, Herberto Helder publicou um novo livro, Servidões, e voltou a alvoroçar a cena literária como nenhum outro poeta português seria hoje capaz de fazer. A obra suscitou de imediato uma sucessão de notícias e recensões, e a edição, de cinco mil exemplares - um número pouco menos do que impensável para um livro de poemas - esgotou em poucos dias nas livrarias e também já não está disponível na editora (o volume tem a chancela da Assírio & Alvim, que pertence agora ao grupo Porto Editora).
O prestígio do autor, intensificado por décadas de uma exemplar recusa em contribuir para a nossa pequena feira das letras, ajudará decerto a explicar a expectativa com que foi recebido este seu novo livro. Mas, em boa verdade, o próprio livro bastaria para a justificar. Se A Faca Não Corta o Fogo (2008) reconhecidamente trouxera novas inflexões a esta poesia, Servidões não é menos surpreendente. O que nele desde logo impressiona o leitor é a assustadora criatividade de que Herberto dá provas aos 80 anos, mas não é menos notável que estes seus últimos livros, com tudo o que trazem de novo, e por vezes até de exuberantemente novo, nem por isso deixem de manter com a sua obra anterior uma coerência sem falhas.
Ou, dito de outra maneira: a mestria verbal de Herberto Helder, responsável por esse efeito quase hipnótico que a sua poesia sempre produziu - e que milagrosamente sobreviveu à transição para o registo mais rugoso inaugurado em A Faca Não Corta o Fogo -, é, em sentido muito literal, fascinante, mas não o é menos a evidência de estarmos perante um desses raros casos de entrega absoluta a um percurso artístico assumido como predestinação pessoal.
Diferente em quase tudo de Fernando Pessoa, se alguma coisa aproxima Herberto Helder, cada vez mais obviamente o poeta central da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, daquele que desempenhou idêntico papel na primeira metade do século, será justamente essa ideia de predestinação, que em ambos é também um tópico da própria obra. "A cabeça ficara marcada, invisível, mas quando me deitava de costas, na escuridão, sentia uma queimadura na têmpora, a crosta fervendo por baixo, da nuca à testa. Interpretava-a como uma cicatriz que me acompanharia até à morte, o emblema de uma guerra assombrosa de que já esquecera os pormenores e o sentido", lê-se no texto em prosa que antecede Servidões. E um dos poemas do livro abre com estes versos pungentes, de quem sabe que a estrela do génio, se ainda tem energia para inesperadamente voltar a brilhar, não o protegerá da velhice e da morte: "uma espuma de sal bateu-me alto na cabeça,/ nunca mais fui o mesmo,/ passei por todos os mistérios simples, e agora estou tão humano: morro,/ às vezes ressuscito para fazer uma grande surpresa a mim mesmo (...)".
Talvez passe por aqui a razão de Herberto Helder ter tido, desde cedo, dois tipos de leitores: os que suspeitavam que aquela beleza sumptuosa e aterradora poderia não ser isenta de alguma arbitrariedade, e os que nela intuíam uma coerência profunda, adivinhando que tudo ali batia implacavelmente certo. Em A Faca Não Corta o Fogo, o poeta escreve: "(...) paixão: tirar,/ pôr, mudar uma palavra, ou melhor: ficar certo/ com a vírgula no meio da luz (...)".
O tributo que Herberto paga pela sua fidelidade a essa espécie de predestinação, e simultaneamente a exigência que esta lhe coloca, é a necessidade de conquistar uma singularidade absoluta. Mais do que criar beleza - "sabe Deus quanto a beleza me custa e quanto o ganho é imponderável", diz em Servidões -, talvez a verdadeira essência do seu trabalho, o propósito da sua arte, seja o de se tornar radicalmente único. É a essa luz que deve ler-se, por exemplo, o facto de, em diferentes poemas deste livro, Herberto se insurgir contra alguém que há muitos anos se apropriou de um "pequeno achado" seu, a expressão "rosa esquerda", argumentando: "roubam-me um erro apenas que acertava só comigo". Noutro poema evoca o pedido que recebeu para enviar um inédito para uma revista ("a revista onde colaboram todos"), e escreve: "E eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque/ nada se reparte: ou se devora tudo/ ou não se toca em nada/ (...) só colaboro na minha morte".
Que língua é esta?
Para indagar o modo como alguns dos leitores mais qualificados de Herberto vêem a posição que Servidões vem agora ocupar nesse "poema contínuo" que Herberto vai constantemente reescrevendo, o Ípsilon ouviu poetas e ensaístas de diferentes gerações - Manuel Gusmão, Rosa Maria Martelo (que assina também um texto neste suplemento), Manuel de Freitas e Diogo Vaz Pinto -, cujas opiniões vêm somar-se às que o crítico António Guerreiro exprime nos textos que assina neste suplemento.
Os vários inquiridos revelam algum consenso na convicção de que este novo livro intensifica a inflexão mais áspera que A Faca Não Corta o Fogo já trouxera a esta escrita, mas também precisam que essa linha de continuidade não impede Servidões de ser "um recomeço", para usar uma palavra que tanto Gusmão como Freitas lhe aplicam.
O próprio Herberto Helder, naquele que é, após um camoniano dístico de abertura, o primeiro poema do livro, coloca expressamente Servidões sob o signo de um renascimento: "saio hoje ao mundo,/ cordão de sangue à volta do pescoço (...)". Gusmão vê neste texto "uma certidão de nascimento", a afirmação de "um novo recomeço aos 80 anos", mas também nota que "esse recém-nascido" de que o poema fala "traz à volta do pescoço um cordão que o pode estrangular, que é uma ameaça e também uma marca do sofrimento e do trauma do nascimento".
Para Manuel Gusmão, tanto A Faca Não Corta o Fogo (2008) como Servidões "são quase uma espécie de explosão inicial". E se vê "diferenças assinaláveis" entre ambos os livros, interessa-lhe sobretudo pensar o modo como Servidões "coloca o problema da língua, a questão de saber qual é a língua desta poesia". Uma pergunta que, lembra, Rosa Maria Martelo já tinha levantado em relação a A Faca Não Corta o Fogo, mas que este novo livro "vem tornar ainda mais pertinente".
A poesia de Herberto Helder "manteve sempre com o português europeu uma relação impressionantemente viva", diz Gusmão, mas em Servidões fica "definitivamente afastada qualquer ideia de pureza da língua". Se já em A Faca Não Corta o Fogo o poeta "convocava outras línguas, como o francês", e irritava os "puristas do português" com "efeitos que pareciam brasileirismos fonéticos e sintácticos", neste novo livro "a sabotagem é agora feita do interior da língua, misturando contextos discursivos e linguísticos e alterando a hierarquia dos diferentes níveis de utilização da língua". Um bom exemplo desse trânsito constante entre diferentes níveis de que fala Gusmão é o extraordinário poema que abre com o verso "cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo", no qual um falecido Herberto Helder fala, na primeira pessoa, do destino dado ao seu corpo e à sua obra. Como se vê neste breve excerto, em poucos versos vai-se de "Deus" à "merda" e dos "esgotos" a uma "vita nuova" de ecos dantescos: "que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,/ o receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos esgotos,/ merda perpétua,/ e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:/ vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo (...)".
Há em Servidões "um vocabulário obsceno que era muito raro nos primeiros livros do autor", observa Gusmão, e também "um léxico satírico" no qual o ensaísta intui "a presença de Mário Cesariny". Gusmão elogia ainda a "audácia" de Herberto em deixar entrar na sua poesia palavras como "cuecas", que surge num breve poema altamente aliterativo: "no mais carnal das nádegas/ as marcas/ das frescas cuecas".
Logo a seguir ao texto em prosa que abre o volume, dois versos isolados, funcionando como uma espécie de epígrafe, parecem querer assumir um tom deliberadamente camoniano: "dos trabalhos do mundo corrompida/ que servidões carrega a minha vida". Manuel Gusmão recorda que "sempre houve nesta poesia, desde os primeiros livros, toques camonianos", e atribui o fascínio de Herberto ao facto de ter sido Camões que, em muitos sentidos, "inventou a língua em que a poesia portuguesa se escreve". Mas a presença do poeta quinhentista neste último livro parece-lhe assumir contornos particulares: "Reconheço que ainda não pensei isto bem, mas é como se Herberto Helder viesse fechar o ciclo aberto por Camões, como se tivesse a audácia de se despedir de uma língua como quem se despede de uma vida, num momento em que estamos sob ocupação política".
Rosa Maria Martelo também recorre ao já referido poema que Herberto terá escrito no seu 80.º aniversário, e cujo verso final é "iminente para sempre", para sugerir que Servidões vem fechar a obra, mas fechá-la de um modo em que esse "poema perfeito prometido" citado no final de outro poema, esse "desejo absoluto de perfeição", estará para sempre iminente no poema que fica feito".
Um livro final
Diogo Vaz Pinto, poeta, crítico e co-responsável da editora Língua Morta e da revista Criatura, confessa que embora já gostasse da poesia de Herberto Helder antes de A Faca Não Corta o Fogo, não achava que esta fosse "uma espécie de revelação última". Reconhecia-lhe o mérito de ter conseguido conciliar "a liberdade do surrealismo" com uma "disciplina" que não a deixava cair no "caos lírico", e constatava que "depois de ler Herberto Helder continuava a ouvir a música, aquela voz ia ficando". Mas foi o livro de 2008, ou mais precisamente o ter ouvido o livreiro Changuito, que entretanto se radicou no Brasil, a ler em voz alta alguns poemas de A Faca Não Corta o Fogo, que o deixou "abismado": "Mais do que um poema, aquilo era um discurso político dirigido a uma comunidade, ao mundo, era alguém a ascender à condição máxima do humano para, chegado a essa altura, dizer uma coisa que vai para lá do literário e que tem uma humanidade profunda."
E Diogo Vaz Pinto acha que esta dimensão política e cívica "está ainda mais radicalizada" em Servidões. "É um livro que interessa a muita gente que não se interessa por poesia, com indicações muito fortes para dentro e para fora da literatura, e também para o momento histórico que vivemos." Para "a gente da geração de Herberto", sugere Vaz Pinto, "estes últimos seis ou sete anos no mundo devem ter sido uma coisa incrível: já antes se via que isto ia por mau caminho, mas aí percebeu-se que estava tudo entregue à bicharada".
Vendo em Servidões mais "um passo adiante" do que algo essencialmente diferente de A Faca Não Corta o Fogo, Diogo Vaz Pinto acha, ainda assim, que há agora "uma força testamentária", um "dizer as últimas palavras" que não se sente no livro anterior. "Não importa se escreverá ou não outros livros, este será sempre um livro final."
Partindo da ideia de que "a poesia é um discurso que está ao mesmo tempo antes e depois da História", o autor de Nervo profetiza: "Estes poemas dizem-nos muito a nós que estamos a passar por tudo isto, mas no fim vão acabar por ser sobretudo um testemunho muito claro de como um poeta pode ascender a um verdadeiro estado de graça."
E confrontando Herberto com Fernando Pessoa, diz que o segundo dominava a língua, mas que o primeiro "fez uma coisa mais interessante: construiu a sua própria língua a partir do português". Esta noção de que Herberto, sem quebrar as amarras com o português, desenvolveu uma língua própria é partilhada por Rosa Maria Martelo, que chama a atenção para o modo como essa "conquista de uma gramática pessoal se vem mesmo intensificando nos últimos livros".
Do demiurgo ao cidadão
O poeta e crítico Manuel de Freitas, co-editor da Averno e da revista Telhados de Vidro, onde Herberto publicara um dos textos que agora recupera na prosa que abre Servidões, está de acordo com Gusmão ao ver neste livro "um recomeço", algo "extremamente improvável", acrescenta, "quando se tem a idade e o percurso de Herberto Helder". Também não se afasta muito dos restantes inquiridos, e sobretudo de Diogo Vaz Pinto, quando, recorrendo a duas expressões do próprio poeta, descreve a natureza desse recomeço como "uma substituição do "canto inteiro" por uma "fala cantante" mais rente à linguagem comum e ao mundo", entendido "num sentido histórico e já não exultantemente atemporal". Uma substituição que Manuel de Freitas considera "brutal", dando como exemplo um poema de Servidões em que as mães, "tema obsessivo" da poesia de Herberto, "adquirem uma concisão aterradora": "as manhãs começam logo com a morte das mães (...)". E para se ver a dimensão da mudança de registo, sugere este excerto retirado do livro Do Mundo (1994): "áureas/ mães aracnídeas furando os ganchos nos tecidos suaves/ rasgando nos tecidos/ os orifícios/ vermelhos".
A tese de Freitas, e nisto já começa a não coincidir exactamente com nenhum dos outros poetas e ensaístas ouvidos, é a de que Herberto Helder "chegara em Do Mundo a uma espécie de limite intransponível", a partir do qual "não havia futuro para aquela música arrebatada e quase intemporal". O mesmo Herberto que em Do Mundo reconhece que não pode "escrever mais alto" diz num verso de Servidões que quer "encontrar uma voz paupérrima", nota Manuel de Freitas.
Após ter chegado em Do Mundo ao "grau máximo de beleza", ao tal "canto inteiro" que, justamente por ser inteiro, "não era continuável", Herberto Helder, lembra Freitas, não publicou nenhum livro durante muitos anos. Até surgir, em 2008, A Faca Não Corta o Fogo, no qual vê "um retorno à "áspera beleza" e à "átona música mínima"" que, defende, "já se deixavam ler em certas passagens de Os Passos em Volta, de Photomaton & Vox ou até do renegado Apresentação do Rosto".
O poeta de Game Over e Boa Morte observa que essa "violência" que muitos têm detectado nos dois últimos livros de Herberto Helder, sendo "pouco habitual" na poesia anterior, sempre foi "omnipresente" na sua prosa. Mas o salto mais arriscado da sua tese é aquele em que sugere que assistimos, em A Faca Não Corta o Fogo e Servidões, à "lenta e rude passagem do demiurgo ao cidadão civil". #

Herberto Helder, o poeta que recusou o Prémio Pessoa

por Lusa

Herberto Helder, o poeta que recusou o Prémio Pessoa

Considerado um dos maiores poetas portugueses, Herberto Helder, que morreu segunda-feira aos 84 anos, deu a sua última entrevista em 1968 e recusou o Prémio Pessoa na década de noventa, rejeitando quase sempre o mediatismo literário.

Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu a 23 de novembro de 1930 no Funchal, ilha da Madeira, no seio de uma família de origem judaica.
Aos 16 anos viajou para Lisboa para frequentar o liceu, tendo posteriormente ingressado na Faculdade de Direito de Coimbra.
Em 1949, mudou para a Faculdade de Letras, onde frequentou o curso de Filologia Romântica, que não chegou a concluir.
De regresso a Lisboa, passou a viver "por razões pessoais" numa 'casa de passe' e começou a trabalhar na Caixa Geral de Depósitos e posteriormente como angariador de publicidade.
Em 1954, data da publicação do seu primeiro poema, em Coimbra, regressou à Madeira, onde trabalhou como meteorologista.
Quando regressou a Lisboa, em 1955, frequentou o grupo do Café Gelo, formado por figuras como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Hélder Macedo, João Vieira e António José Forte.
Trabalhou como delegado de propaganda médica e redator de publicidade durante três anos e em 1958 publicou o seu primeiro livro, "O Amor em Visita".
Nos anos seguintes viveu em França, Holanda e Bélgica, como operário, empregado numa cervejaria, cortador de legumes, empacotador de aparas de papel e policopista, tendo mesmo vivido na clandestinidade em Antuérpia, onde foi guia de marinheiros no submundo da prostituição.
Regressado a Portugal em 1960, tornou-se encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, profissão que o fez percorrer vilas e aldeias do Baixo Alentejo, Beira Alta e Ribatejo.
Foi para Angola em 1971, trabalhar numa revista. Como repórter de guerra, sofreu um grave acidente e esteve hospitalizado três meses.
Regressou a Lisboa e partiu novamente, agora para os Estados Unidos, em 1973, ano em que publicou "Poesia Toda", reunindo a sua produção poética até à data, e fez uma tentativa falhada de publicar "Prosa Toda".
A Portugal, voltaria só depois do 25 de Abril, já em 1975, para trabalhar na rádio e em revistas, como meio de sobrevivência, tendo sido editor da revista literária Nova, de que se publicaram apenas dois números.
Da sua poesia, escreveu o crítico literário e responsável pela primeira edição brasileira da poesia de Herberto Helder publicada no Brasil, em 2000, Jorge Henrique Bastos, que o poeta "impulsiona a viva encantação das palavras [e que] o abalo que a sua poesia provoca é um dos mais profundos que a literatura de língua portuguesa já sofreu".
Já neste século, o poeta voltou a editar pela Porto Editora, nomeadamente a sua poesia completa em "Poemas completos", obra que segue a fixação empregue na edição anterior, "Ofício cantante", e inclui os esgotados "Servidões", que foi considerado pela crítica literária como o livro do ano em 2013, e "A morte sem mestre", o livro de inéditos escrito em 2013 e publicado em 2014, numa edição limitada.
Herberto Helder morreu na segunda-feira aos 84 anos na sua casa em cascais e segundo fonte familiar haverá uma cerimónia fúnebre privada apenas para a família. #

Herberto Hélder (1930-2015): Photomaton & voz

Na morte de Herberto Hélder, recuperamos Photomaton & voz, o artigo de Maria Leonor Nunes para o JL em Outubro de 2008.

Subtrai-se por vontade às andanças da Literatura, cega o espaço à sua volta, vive à margem do sistema literário e não só, num certo resguardo. O retrato de Herberto Hélder compõe-se em movimento e em negativo. Nem prémios - recusou mesmo o avultado Pessoa, em 1994 -, nem entrevistas, nem fotografias nos jornais, nem falatório mediático, nem conversas com leitores. Nada. São raríssimas as imagens em que ficou retratado. Não se lhe conhecem entrevistas, sequer umas declarações nas últimas décadas. Há apenas a remota lembrança, quase lenda, de uma ou outra entrevista inicial como aquela a Fernando Ribeiro de Mello, publicada em Maio de 1964, no Jornal de Letras e Artes. Nela, o poeta, que já tinha cinco livros editados, recusava a ideia de evolução na sua produção poética. "Em certo sentido (que também prezo), não houve evolução. Esse sentido é o da fidelidade às bases da minha experiência - a descoberta do modo - que, fundamentalmente, se cumpriu na infância. A experiência exterior poderá ser considerada simples desenvolvimento ou enriquecimento 'em linguagem'. A minha poesia processou sempre, como é evidente, exercer-se sobre essa massa central e viva. Mas a experiência humana é apenas ponto de partida, núcleo sólido e permanente onde assenta a experiência posterior da criação". E noutro passo, acrescenta: "O prestígio que possa ter alcançado (prestígio equívoco no qual se integra a malquerença de alguma gente, que aceito com satisfação) não poderia constituir uma poltrona. O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento".Numa outra entrevista à revista Luzes de Galiza, em 1987, sublinhava "Todos os poemas são canções de eco, procuram ser confirmados. De que sítio se lança a voz, que género de confirmação se pretende? A confirmação, sempre, do poema a si mesmo e em si mesmo". E mais adiante: "Há quem se ponha no centro de câmaras ecoantes: e os ecos chegam de todos os lados: as respostas caóticas, o êxito, o erro, a morte da alma (...) Quanto ao mundo, o poema espera tudo dele menos o equívoco, embora seja o equívoco aquilo que se encontra mais à mão no mundo". Herberto Hélder faz parte de um número muito restrito de escritores, tal como por exemplo Thomas Pynchon, que recusa a ribalta, o espectáculo. Manuel Alegre admira nele justamente esse "estilo de vida que rima com a sua poesia, o distanciamento da literatice, dos prémios, do academismo com tudo o que isso implica de renúncia". Todos os superlativos
Sabe-se dele a poesia infinitamente escrita e reescrita, feita e refeita longe do mundo e da mundanidade. "O feroz magma da magia, os raios lacerados do entendimento transmutador, a solar gnose do corpo total, a obscura cintilação dos abismos transpsíquicos enodoam-se na lenta e ampla voz da sua escrita repetida como uma encantação", conforme escreveu Joaquim Manuel Magalhães num dos textos de Os dois crepúsculos.
Uma obra que se distingue por um poder criador que "soube organizar um universo inconfundível e servido por uma transbordante energia verbal", segundo Fernando Pinto do Amaral. Ou a capacidade inovadora sublinhada por Manuel Alegre ao JL no tema dedicado a Herberto Hélder em 1994 (JL 626): "Depois de Camilo Pessanha e de Fernando Pessoa, Herberto foi aquele que mais revolucionou a poesia portuguesa". Na mesma altura, Agustina Bessa-Luís ia mais longe: "Usem todos os superlativos". E todos não serão de mais para uma tão extraordinária poética, que surpreendeu o meio literário desde o primeiro verso de O amor em visita, publicado em 1958, na Contraponto de Luiz Pacheco. E que desde logo se afirmou por uma profunda novidade que muitos poemas mais tarde seria uma herança viva para a Literatura Portuguesa.
A colher na boca (1961), Os passos em volta (1963), A Máquina Lírica, primeiro editado com o título Eletrónicolirica (1964), Húmus, Retrato em Movimento (1967), Cobra (1977), Photomaton & vox (1979), A cabeça entre as mãos, (1982), A última Ciência (1988) são alguns dos seus livros. Muitos foram reescritos sucessivas vezes em sucessivas edições. Todos de referência.
O profeta da poesia
De Herberto, além das palavras, e da sua "oficina" alquímica da linguagem, sabem-se meia dúzia de coisas que talvez não cheguem para clarificar a sua existência deliberadamente obscura. Mas provavelmente bastam para um photomaton biográfico. Nasceu a 23 de Novembro de 1930, no Funchal. A mãe morreu quando tinha oito anos. Fez o 5.º ano do Liceu na Madeira e em meadosdos anos 40 veio estudar para Lisboa. Feito o 7.º ano seguiu para a Universidade de Coimbra. Na parede do "Palácio da Loucura", a república onde vivia, deixou gravado um verso: "O senhor do monóculo /usava uma boca desdenhosa /e na botoeira, a insolência /de uma rosa / - Era o poeta".Começou por estudar Direito, depois mudou-se para Filologia românica e frequentou um curso de Ciências Pedagógicas. Andava teso como a generalidade dos estudantes, uma "simpática miséria, com poucos cobres, muitos copos, comezainas e altas discussões pela calada da noite", como recordava o psiquiatraManuel Louzã Henriques, companheiro desses tempos. Tal como Manuel Alegre que já então o considerava o "profeta" da poesia. E um dia Herberto largou a Universidade e demandou Lisboa para ser poeta.
Trabalhou na Caixa Geral de Depósitos e como angariador de publicidade do Anuário Comercial Português, regressando depois ao Funchal, onde trabalhou no Serviço Metereológico Nacional. De novo em Lisboa, passa pelo Instituto Pasteur, como delegado de propaganda médica. Depois de ter publicado alguns poemas avulsos e colaborado em algumas publicações, nomeadamente nos Cadernos do Meio-Dia e nas Folhas de Poesia, saiu do país. Viveu em França, Bélgica, Holanda e Dinamarca e foi empregado de cervejaria, cortador de legumes, enfardador de aparas de papel, policopista, carregador de camiões, ajudante de pasteleiro, guia de marinheiros em bairros de prostituição. Em 1961, é repatriado. Colaborou em vários jornais, suplementos literários e em 1971 foi para Angola. Lá fez várias reportagens para a revista Notícia, onde continuou já de novo em Lisboa. Uma entrevista com o cantor brasileiro Nelson Ned e uma reportagem sobre um derby Sporting-Benfica, a que chamou Uma ida ao campo, são alguns dos seus louros jornalísticos dessa época.
Também foi director literário da editorial Estampa, funcionário do serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, revisor tipográfico, redactor de noticiários da RDP, ou de publicidade. E andou por muitos cafés, mais ou menos literários, do Gelo ou do Royal ao Monte Carlo e ao Toni dos Bifes, passando pelo Expresso ou pelo Águia d'Ouro, nas escadinhas do Duque. Os que o conhecem, os que tiveram o privilégio de o ouvir falar, rir em cavaqueira, comprovam que os poemas têm a medida daquele que os cria. Foi o que constatou o cineasta João César Monteiro, como afirmou nessa edição do JL: "De vez em quando, ele soltava umas que iluminavam as tardes".
Os outros que só o escutam nos livros sabem que é uma voz única, um flash, um clarão de poesia. Pouco importa a imagem, as feições ténues que conhecemos das poucas fotografias todas muito antigas. O seu rosto, a sua fala, a sua biografia é poema. Ou o poeta é acto. Ou como dizia Herberto Hélder à Luzes de Galiza: "Porque é obrigatório dizê-lo: pouca gente tem ouvidos puros. Ou mãos limpas. Ler bem um poema é poder fazê-lo, refazê-lo: eis o espelho, o mágico objecto do reconhecimento, o objecto activo de criação do rosto. O eco visual se quanto a rostos fosse apenas tê-los fora e ver. Porque o mostrado e o visto são a totalidade daquilo que se mostra e vê - o nome: revelação". #

Herberto

MORREU O POETA DA MORTE SEM MESTRE

Na morte de Herberto Helder | Adelto Gonçalves

Atenção senhores políticos | Maria Estela Guedes

Retratos digitais de Herberto Helder | João Dionísio
Na morte de Herberto Helder | Adelto Gonçalves
Retratos digitais de Herberto Helder | João Dionísio
O rio camoniano | Maria Estela Guedes
Mestre sem morte | Maria Azenha
Cobra, de Herberto Helder | Joana Ruas
Três autores malditos: Herberto Helder, Luiz Pacheco
e Manuel de Castro | Maria Estela Guedes
Mestre Herberto Helder | Maria Estela Guedes
Sobre Manuel de Castro - Um texto de Herberto Helder
Por Maria Estela Guedes
Herberto Helder, Cobra, Dispersão Poética . Edição Evolutiva
Por Patrícia Alexandra Matias Gomes dos Santos de Antunes
Aos amigos, poema dito por António Cardoso Pinto
Herberto Helder: É e não é um poeta surrealista.
Por Maria Estela Guedes
Estranhas experiências ao Ofício Cantante de Herberto Helder
Por Victor Brum Calaça
Artigos na Notícia
2009
Lapinha do Caseiro
Declaram que a melhor maneira de contemplar a natureza é de cima de uma bicicleta (Marilyn Monroe dixit)...
Herberto Helder entrevistado por Fernando Ribeiro de Mello
A Faca Não Corta o Fogo — Súmula & Inédita
Herberto Helder, percurso biográfico :
Maria de Fátima Marinho
HH E O PRÉMIO PESSOA :
António Alçada Baptista e Clara Ferreira Alves
Herberto Helder redivivo
em edição espanhola
POEMAS & OUTROS TEXTOS
Minha cabeça estremece (áudio)
Herberto Helder em São Paulo
Herberto Helder na Real República Palácio da Loucura
Súmula
(a carta da paixão)
O amor em visita
As musas cegas
Exemplo
Êxodo
Herberto Helder em versão ciber-Zen: Rui Eduardo Paes
ANTONY C. BEZERRA: A Poética de Herberto Helder:
o ponto de partida
MAGENS DA PAIXÃO COM PALAVRAS DE HERBERTO HELDER
Bibliografia por João Ribeirete e Margarida Reis (pdf)
(Em: http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/revistas/textosepretextos/vol1/bibliografia.pdf )
Herberto Helder nasceu no Funchal, ilha da Madeira, no dia 23 de Novembro de 1930. Morreu em Cascais, a 24 de março de 2015. Frequentou a Faculdade de Letras de Coimbra, tendo trabalhado em Lisboa como jornalista, bibliotecário, tradutor e apresentador de programas de rádio. Começou desde cedo a escrever poesia, colaborando em várias publicações de que se destacam: Graal, Cadernos do Meio-Dia, Pirâmide, Poesia Experimental (1 e 2), Hidra e Nova.
É um dos introdutores do movimento surrealista em Portugal nos anos cinquenta, de que mais tarde se viria a afastar. É o poeta mítico da modernidade portuguesa contemporânea, não só pela intensidade particular da sua obra (quer considerada em conjunto, quer na simples leitura de um único dos seus versos) mas também pelo seu estilo de vida discreto e avesso a todas as manifestações da instituição literária.
Desde O Amor em Visita, 1958, até mais recentemente, em Do Mundo, 1994, passando por Electronicolírica, 1964, e por Última Ciência, 1988, a sua poesia atravessa várias correntes literárias, manifestando uma escrita muito singular e trabalhada, sendo exemplo de um conseguimento sem falhas, sem debilidades nem concessões. Na ficção, Os Passos em Volta, 1963 (contos), revela o mesmo tipo de elaboração linguística cuidada e encara a problemática da deambulação humana, em demanda ou em dispersão do seu sentido e da sua inteireza. Obras: Poesia – O Amor em Visita (1958), A Colher na Boca (1961), Poemacto (1961), Retrato em Movimento (1967), O Bebedor Nocturno (1968), Vocação Animal (1971), Cobra (1977), O Corpo o Luxo a Obra (1978), Photomaton & Vox (1979), Flash (1980), A Cabeça entre as Mãos (1982), As Magias (1987), Última Ciência (1988), Do Mundo, (1994), Poesia Toda (1º vol. de 1953 a 1966; 2º vol. de 1963 a 1971) (1973), Poesia Toda (1ª ed. em 1981), Ou o Poema Contínuo (2ª. ed., 2004); A faca não corta o fogo (2008); Servidões (2013); A morte sem mestre (2014) . Ficção – Os Passos em Volta (1963).

2 comentários:

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